ATENDIMENTO COM PSICÓLOGO
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Friedrich-Wilhelm von Hermmann
Dedicado à memória de Medard Boss

Tradução do alemão para o francês de Birgit Richer com colaboração
de Françoise Dastur

I – Beiträge zur Philosophie e Ser e Tempo

1. Desde o aparecimento dos Beiträge zur Philosophie, parte da obra póstuma publicada em 1989, o debate em torno do pensamento de Heidegger em todo o mundo defronta-se com uma situação completamente nova. Pois os Beiträge zur Philosophie são, depois e ao lado de Ser e Tempo, a segunda obra principal de Heidegger. Enquanto tais estes Beiträge preparam o terreno e traçam o esboço do pensamento de Heidegger desde o começo dos anos trinta, sem que este próprio esboço tenha sido comunicado durante a vida de Heidegger, nem em conferências públicas e cursos, nem em publicações. O manuscrito foi redigido entre 1936 e 1938. Entretanto não foi somente nessa data que o pensamento dos Beiträge zur Philosophie começou, como podemos ver pelas notas introdutórias. Estas nos dizem que nesse texto “será escrito o que foi guardado por longos períodos de hesitações”. O período de longas hesitações durou da primavera de 1932 até 1936. Pois, como sabemos por uma nota póstuma, o projeto ao qual os Beiträge zur Philosophie dão uma primeira forma foi concebido, em seus traços principais, a partir da primavera de 1932.

2. No parágrafo 35 dos Beiträge podemos ler: “O “Ereiginis” seria o título apropriado para a “obra” que, aqui, podemos apenas ser preparada; é por isso que é preciso colocar em seu lugar: Beiträge zur Philosophie. Heidegger chama “Beiträge zur Philosophie” o “título público” ao qual é preciso juntar “o verdadeiro título”, “Do Ereiginis”. Mesmo que os Beiträge zur Philosophie só tratem “do” Ereignis e só preparem a obra futura que trará o título “O Ereiginis”, é, entretanto, precisamente nesse manuscrito –– como nota de Heidegger ainda em 1962 – que foram elaboradas as “relações e a coesão do conjunto disso que constitui o Ereiginis em seu desdobramento”.

3. Para designar o caráter da articulação interior, isto é, relativo à coisa mesma, do pensamento da história do ser, Heidegger escolheu a palavra “fuga”. No parágrafo 23 é levantada a questão de saber “por que caminhos e de que maneiras pode-se apresentar e comunicas a “fuga” do pensamento da história do ser. A resposta cita dois caminhos e duas maneiras. O primeiro caminho e a primeira maneira são “a primeira organização da fuga (a ressonância – o último deus) “. Aí são designados os Beiträge zur Philosophie, que desenvolvem a fuga, isto é, a articulação do pensamento da história do ser por um caminho que articula seis âmbitos de estruturação. É o caminho que leva da ressonância até o último deus, isto é, o caminho que, partindo da ressonância pelo entre-jogo, o salto, o fundamento e os que estão por vir até desembocar no último deus. Este caminho da organização da fuga do pensamento da história a do ser é o caminho no qual é preparado o pensamento do Ereiginis. É preciso distinguir deste caminho, como um segundo caminho e segunda maneira da apresentação e comunicação do pensamento da história do ser, aquele outro caminho que consiste em “ressaltar questões particulares”. Neste segundo caminho deve-se renunciar à “abertura e organização homogêneas do âmbito inteiro da fuga”. Todos os escritos de Heidegger publicados durante sua vida (cursos, conferências, exposições e tratados), e também todos os publicados até o aparecimento dos Beiträge zur Philosophie apenas “salientam questões particulares” sem “a abertura e organização homogêneas do âmbito inteiro da fuga”. Esta organização acontece pela primeira vez e de modo determinante nos Beiträge zur Philosophie. É assim, então, que o debate em trono do aparecimento dos Beiträge zur Philosophie, pois somente agora somos capazes de compreender todos os escritos de Heidegger desde os anos trinta a partir do “âmbito inteiro da fuga”, âmbito a partir do qual eles foram pensados.

4. Com a palavra fundamental “Ereiginis”, Heidegger pensa o pertencer mútuo do ser e do Da-sein, mais precisamente: o pertencer mútuo da verdade ou clareira do ser e do Dasein do homem. Isto quer dizer primeiramente: o pensamento dos Ereiginis não abandona o pensamento do Dasein, ele inclui este pensamento que foi elaborado na analítica do Dasein de Ser e Tempo. Em Ser e Tempo Heidegger pensa também o pertencer mútuo do Dasein e do SER, só que isso não é pensado como Ereiginis, mas como a coesão formada pela transcendência e pelo horizonte. Partindo da questão condutora da filosofia tradicional, ou seja, a questão do ente enquanto tal e tomando uma distância crítica com relação a ela, Heidegger caracteriza sua própria questão fundamental como a questão do ser enquanto tal, isto é, com a questão do ser, ele mesmo, em sua própria verdade. Esta questão do ser enquanto tal, que é retomada de uma maneira mais originária do que foi tratada pela filosofia grega, só pode ser tratada e desdobrada colocando-se também a questão da essência do ser humano de modo mais originário do que na antiguidade e na tradição. À questão do ente enquanto tal correspondia e corresponde sempre a essência do ser humano compreendida como … (grego) … e animal rationale, enquanto que, no pensamento heideggeriano, é só o Dasein que, na medida em que ele existe compreendendo o ser, torna possível um questionamento do ser enquanto tal em sua própria verdade. A verdade ou clareira do ser é ligada, em seu desdobramento, ao Dasein e à sua existência, e pode-se dizer, inversamente, que Dasein enquanto Dasein se relaciona, no desdobramento de seu ser, à verdade do ser.

5. No entanto, a relação da verdade do ser à existência do Dasein e a relação que liga a existência à verdade do ser podem ser determinadas de diferentes maneiras segundo o modo como essas relações se manifestam ao pensamento. Se se segue o primeiro caminho da elaboração da questão do ser, que é o caminho no qual se empenha Ser o Tempo, a relação da verdade do ser ao Dasein que compreende o ser – e isto quer dizer: que transcende – mostra-se como um horizonte, insto é, como isto em direção a que o Dasein transcende. Transcender que dizer: ultrapassar o ente em direção ao ser que se abre como horizonte, para compreender o ente ao qual nos relacionamos precisamente como este ente que ele é, e tal como ele é, a partir desta verdade horizontal ou desta abertura do ser.

6. O segundo caminho da elaboração da questão do ser, que se abre a partir de uma transformação imanente do primeiro caminho, resulta de que a relação da verdade do ser ao Dasein não se mostra mais como horizonte, mas como doação historicamente apropriante, enquanto que a relação do Dasein à verdade do ser não se mostra mais como transcendência, como projeto transcendente, mas como projeto apropriado. No caminho em que se empenha Ser e Tempo, o transcender se realiza com uma projeção lançada, quer dizer, como aquilo que abre a verdade enquanto abertura do ser. O que é decisivo no segundo caminho, o caminho dos Beiträge zur Philosophie, é que daí em diante, o ser lançado do projeto de ser do Dasein manifesta-se em sua proveniência fenomenal, ou seja, a partir da doação da verdade enquanto abertura do ser. Heidegger concebe esta doação como apropriação porque a existência do Dasein e este mesmo abrem-se a partir da doação e tornam-se propriedade da verdade do ser. É por isso que o ser-projetante da existência não é somente lançado – como em Ser e Tempo -, mas, enquanto lançado, igualmente apropriado, isto é , apropriado a partir da doação apropriante da abertura do ser. A palavra fundamental “Ereiginis” nomeia assim o pertencer mútuo da doação apropriante da abertura do ser e do projeto apropriado do Dasein.

II – ANALÍTICA DO DASEIN E DASEINANALYSE

7. As definições e clarificações fundamentais da relação entre analítica do Dasein e Daseinanalyse dadas por Heidegger nos Seminários de Zollikon, aos quais nos dedicamos agora, são da maior importância porque são determinantes para a Daseinalyse clínica. Já indicamos que a analítica do Dasein constitui não apenas uma parte da elaboração da questão do ser, tal como ela foi tomada no caminho de Ser e Tempo, mas que ela também se integra à elaboração da questão do ser no caminho do pensamento do Ereiginis nos Beiträge zur Philosophie. Se a Daseinanalyse clínica é fundada sobre a analítica filosófica do Dasein, então, será preciso considerar esta relação de fundamento levando em conta os dois caminhos da questão do ser. Nos Seminários de Zollikon Heidegger distingue uma significação de “analítica do Dasein” e três significações de “Daseinanalyse”.

8. Ele define a analítica do Dasein como uma “interpretação ontológica do ser-homem como Dasein, quer dizer, uma interpretação a serviço da questão do ser”. Esta interpretação é ontológica na medida em que explicita o ser e a constituição ontológica do homem. E porque o que há de decisivo nesta constituição ontológica é a compreensão do ser na abertura que é própria a este, a analítica ontológica do Dasein pode, pois, preparar a questão da abertura do ser. É por isso que a analítica do Dasein questiona prioritariamente as determinações que “caracterizam o ser do Dasein tendo em conta sua relação ao ser em geral”. Para compreender propriamente o sentido ontológico da palavra “Dasein”, é preciso colocar a ênfase na segunda sílaba. Dasein, que quer dizer: ser o “Da”, ser este “Da” que é abertura do ser em geral, ser este “Da” ao modo da existência que, por suas determinações existenciais, mas somente aqueles que servem diretamente à elaboração da questão do ser, ela é limitada e propositadamente deixada incompleta. Não todos os existenciais, mas somente aqueles que servem diretamente à elaboração da questão do ser chegam à explicitação em Ser e Tempo. É por isso que a analítica do Dasein em Ser e Tempo não dá, por exemplo, nenhuma interpretação existencial do sonho ou do amor. Pois o sonho é um modo do ser-no-mundo existencial, da mesma maneira que o amor é um modo da solicitude existencial. Estes existenciais, o ser- no- mundo e a solicitude, são necessários para a elaboração da questão do ser, enquanto que uma interpretação existencial dos fenômenos do sonho e do amor não deve faltar a uma analítica ontológica completa do Dasein.

9. A definição da analítica do Dasein é seguida das definições de três significações de Daseinanalyse. A primeira destas três significações se encontra igualmente em Ser e Tempo onde “Daseinanalyse” designa “o trazer à luz determinações do Dasein tematizadas pela analítica do Dasein”. Este primeiro conceito de Daseinanalyse ainda faz parte “da analítica do Dasein, e aí, de uma ontologia”.

10. A segunda e a terceira significações de Daseinanalyse, por outro lado, não fazem mais parte de uma ontologia do Dasein, mas a ela estão ligadas por uma relação de fundamento. A Daseinanalyse enquanto modo de realização da analítica ontológica do Dasein é “distinta, por principio, da “Daseinanalyse” no sentido de indicação e de descrição de fenômenos que concretamente e segundo o caso se mostram num Dasein existente particular”. Trata-se da Daseinanalyse clínica, da análise que o médico e o analista praticam em sua relação com o paciente e o analisando. Esta Daseinsanalyse clínica, “se oriente necessariamente – porque ela visa a cada vez um Dasein existente – a partir de determinações fundamentais do ser deste ente, isto é, a partir do que a analítica do Dasein põe em evidência como existenciais”. Aí é caracterizada a relação de fundamento que liga a Daseinsanalyse clinica à analítica filosófico-ontológica do Dasein. O que importa aqui é “que os fenômenos particulares que aparecem na relação mútua entre analisando e analista sejam mostrados e nomeados a partir dos fenômenos mesmos, em se pertencer concreto ao paciente ao qual concernem e não simplesmente subsumidos de modo global sob um existencial” Esta indicação de Heidegger é de uma importância particular para a Daseinanalyse clinica. Não se trata de subsumir sob tal ou tal existencial os fenômenos particulares que concernem concretamente a um paciente; é preciso, ao contrário, “experiência-los, considera-los e trata-los à luz […] do ser-homem enquanto Dasein”. Isto exige, da parte daquele que faz a Daseinanalyse clinica, compreender não só o paciente e a sim mesmo em relação ao paciente, mas também compreender todos os fenômenos concretos que dizem respeito ao paciente, não a partir do horizonte do ser-homem interpretado como animal racional e sim a partir do ser-homem interpretado como Dasein. Heidegger diz a este respeito: “Para o cientista de hoje, mas também para aquele que está familiarizado com o projeto que visa o Dasein, deixar-ser o ente (homem) à luz do Dasein é extremamente difícil e não-habitual e requer que ele se assegure disso sempre de novo”. Trata-se de uma tarefa difícil, porque todos os fenômenos concretos que concernem tanto ao homem doente como ao homem são mostram-se a nós a princípio, naturalmente num contexto interpretativo que determina a partir do ser-homem enquanto animal racional. “Não é possível eliminar e manter distantes as ideias inadequadas que a gente faz sobre este ente, o home, a não ser que se tenha tido êxito na iniciação à experiência do ser-homem como Dasein e isto preceda com sua luz todo o exame do homem são é doente”.

11. A terceira significação de Daseinanalyse, que como a segunda não faz parte da analítica ontológica do Dasein, ainda que como a segunda dela receba seu fundamento, designa “o conjunto de uma possível disciplina que se dá como objetivo expor de maneira coerente os fenômenos existenciários que se podem mostrar no Dasein sócio-histórico e individua, no sentido de uma antropologia ôntica que recebeu a marca analítica do Dasein”. No lugar de uma antropologia “ôntica” nós podemos igualmente falar de uma antropologia existenciária, porque ela expõe os fenômenos existenciários concernentes ao Dasein a partir do horizonte da analítica ontológico-existencial do Dasein. Esta antropologia conforme à analítica do Dasein substituiria a antropologia tradicional fundada sobre o pensamento do animal rationale. A antropologia conforme à analítica do Dasein – a Daseinanalyse Antropológica – pode ser dividida “em uma antropologia da normalidade e, relacionando-se a esta, uma patologia daseinanalitica”.

12. Heidegger designa a relação entre a segunda e a terceira significação de Daseinanalyse como a seguir: a Daseinanalyse no sentido da segunda definição seria a realização da Daseinanalyse no sentido da terceira definição, assim como a Daseinanalyse no sentido da primeira definição seria a realização da analítica do Dasein. Mas aqui é preciso trazer uma retificação ou complemento. Tal como foi definida em seu segundo sentido, a Daseinanalyse é a pratica do Daseianalyse clinica. Em usa realização ela tira elementos da Daseinanalyse no sentido da terceira definição, mas, enquanto prática, ela não é, ela mesma, a realização da Daseinsanalyse antropológica. É preciso, pois, distinguir da prática da Daseinanalyse clinica a realização cientifica da antropologia conforme à analítica do Dasein. É esta realização que corresponde ¡a realização da Daseinanalyse ontológica.

III – Analítica do Dasein, Transcendência e Daseinsanalyse

13. Já no primeiro parágrafo de nossa exposição havíamos sublinhado que o objeto da analítica do Dasein é o Dasein na medida em que ele se relaciona no desdobramento de seu ser, na verdade enquanto abertura do ser. Em sua discussão crítica da Daseinsanalyse psiquiátrica de Ludwig Binswanger, Heidegger salienta a compreensão do ser como base e traço fundamental do Dasein. A compreensão do ser é a estrutura fundamental sobre a qual repousa o Dasein. Seria “a única demanda de Ser e Tempo” mostram em que medida a compreensão do ser “caracteriza o Dasein enquanto tal e aquilo em que ele é fundado, aquilo a que ele permanece unido nele mesmo”. Todos os existenciais mostrados pela analítica do Dasein, como o ser-no-mundo, o cuidado, o ser-para-a-morte, a temporalidade, servem “para determinar a compreensão do ser”. A compreensão do ser existencialmente concebida é caracterizada como um “manter-se, de maneira ekstática e projetante […] na clareira do ‘Da’”. Todos os existenciais são caracteres deste manter-se-na clareira do ser, que constitui o Da-sein como Da-sein. Todos os existenciais, todos os caracteres ontológicos do Da-sein são o que são por sua relação ao “Da” enquanto abertura do ser. Na medida em que a compreensão do ser constitui a determinação fundamental do Dasein enquanto tal, o Dasein não pode jamais ser visto sem esta. Certo, é verdade que apenas a analítica ontológica existencial do Dasein tem por objetivo tematizar o Dasein como compreensão do ser – a Daseinsanalyse não ontológica mas ôntica, quer dizer, contudo, existenciária, não tematiza a compreensão do ser, mas é preciso que, por seus próprios objetivos, ela não perca de vista o Dasein como compreensão do ser. Tendo em vista a Daseinsanalyse como prática e como ciência, Heidegger diz: “Assim uma análise do Dasein que omita esta relação ao ser que se desdobra na compreensão do ser não é uma análise do Dasein”. Tendo em vista Binswanger, ele diz que este não viu “o que é propriamente fundamental e determinante: a compreensão do ser, a abertura”. O importante é que falando da compreensão do ser, Heidegger faça referência à abertura. Em Ser e Tempo esta é o nome do “Da”. Na verdade, da clareira ou da abertura do ser. É a partir do fenômeno fundamental da abertura que o ser enquanto tal, a compreensão do ser, o Dasein e seus existenciais devem ser experienciados e determinados visto a partir deste fenômeno fundamental, o homem perde seu caráter de sujeito e adquire o caráter de Da-sei, lembrando assim os limites do método científico no âmbito da clinica.

14. É preciso que o Dasein seja visto em seu traço fundamenta, a compreensão do ser, para que o ser-no-mundo e a transcendência possam ser experienciados e determinados de modo adequado. Já no primeiro parágrafo de nossa exposição nós tínhamos indicado que a compreensão do ser pelo Dasein, ou seja, seu manter-se projetante-lançado na abertura do ser, (a qual engloba também o mundo do ser-no-mundo) é concebida como um transcender – isso, no caminho da elaboração da questão do ser em Ser e Tempo. Para que possamos nos relaciona a nós mesmos enquanto entes da ordem do Dasein, aos outros entes da ordem do Dasein, assim como ao ente que não é da ordem do Dasein, de tal modo que possamos compreender o ente em questão enquanto tal, é preciso que tenhamos antes transcendido – segundo o modo de ser da projeção lançada – este ente em direção à abertura de seu ser. Quando existindo, nós realizamos este transcender que é compreensão do ser, nós realizamos a diferença ontológica, a diferença entre ser e ente, ou seja, a diferença, realizada transcendendo, entre o ser em sua abertura e o ente em sua manifestidade. A abertura do ser, em direção da qual o Dasein transcende compreendendo o ser, tem o caráter de um horizonte a partir do qual compreendemos o ente como o ente, cujo ser é transcendentalmente e horizontalmente aberto.

15. Assim como a Daseinsanalyse como prática clinica e como ciência antropológica não pode fazer abstração da compressão do ser que caracteriza o Dasein, ela não pode também negligenciar a transcendência como prática clinica e como modo de realização da compreensão do ser. É verdade que a transcendência do Dasein, ela mesma não é objeto da Daseinsanalyse; mas é preciso que esta compreenda os fenômenos concretos que concernem a um Dasein como fenômenos relacionados ao Dasein, que transcende. Todos os fenômenos concretos que concernem a um Dasein são, por sua vez, determinados a partir da compreensão do ser, a qual o Dasein realiza transcendendo.

IV – O EREGINS – ANALÍTICA DO DASEIN E DASEINSANALYSE

16. Nos Seminários de Zollikon, no lugar onde Heidegger caracteriza a compreensão do ser como transcendência, ele, ao mesmo tempo, indica a insuficiência disto e dá uma indicação concernente ao Ereignis. Primeiramente ele define a transcendência como “fundamento da diferença”, já que a diferença ontológica se realiza justamente pela transcendência – no sentido de Ser e Tempo e o de O que faz o ser-essencial de um fundamento ou “razão”, ou de Problemas fundamentais da fenomenologia. A isto ele acrescenta entre parênteses: “ (insuficiente) “. Além disso ele diz: “A transcendência tematizada aqui (em Ser e Tempo e O que faz o ser-essencial de um fundamento ou “razão”) contém unicamente a ‘relação ao’ ser, o ser como relação (Ereignis) “. Podemos, com certeza, tirar dos Beiträge zur Philosophie a explicação da maneira como Heiddeger gostaria que se entendesse a crítica que ele dirige a sim mesmo pela palavra “insuficiente”, assim como a menção que ele faz do “ser como relação (Ereignis) “.

17. No parágrafo 132, intitulado “Ser e ente”, Heidegger mostra por que a interpretação da diferença entre ser e ente, ligada à ideia da transcendência do Dasein, é insuficiente e como ela será superada em benefício de uma interpretação mais originária. Importa compreender a verdade ou abertura do ser, não a partir da transcendência do Dasein, mas “a partir de seu próprio desdobramento (Ereignis). É por isso que é preciso “não ultrapassar o ente (transcendência), mas pular de um salto esta diferença e, aqui a transcendência, e questionar de modo originário, a partir do Ser e da verdade”. A diferença entre ser e ente, compreendida a partir da transcendência, e com ela a transcendência mesma, serão puladas de um salto, quer dizer, abandonadas; e no lugar disso questionar-se-á a partir da verdade do ser mesmo, no momento em que se terá visto que a verdade ou abertura do ser se dá, a partir dela mesma e de modo apropriante, para o projeto de ser do Dasein, que é apropriado a partir dela mesma e de modo apropriante, para o projeto de ser do Dasein, que é apropriado a partir desta doação. No sentido desta reflexão totalmente determinante para o pensamento do Ereignis é dito no parágrafo 122 intitulado “O salto”: o pensamento como salto “é a realização do projeto da verdade do Ser no sentido da entrada naquilo que é aberto, de tal modo que o autor do projeto se experiência como lançado, isto é, apropriado pelo Ser”. A abertura do ser é compreendida em seu próprio desdobrar se ela é experienciada como a doação que lança o Dasein, enquanto doação apropriante, e como doação para o projeto que é lançado, quer dizer apropriado a partir dela. Se o projeto de ser do Dasein, que é um projeto lançado, se mostra como apropriado a partir da doação a cada vez apropriante, o projeto do Dasein compreendendo o ser perde então o caráter da transcendência, da ultrapassagem do ente em direção à abertura horizontal do ser. Pois, como projeto apropriado, ele se mantém em uma relação direta à verdade do ser. O Dasein compreendendo o ser não transcende mais o ente em direção à abertura horizontal de seu ser, mas, como projeto lançado, ele projeta a abertura do ser que lhe foi dado pela doação apropriante, e abriga a abertura, dada e projetada, do ser “no ente e como ente”.

18. Heidegger dá o nome de salto para trás (recuo? Volta?) À totalidade da doação apropriante, que é doação para o projeto apropriado, e concebe, por sua vez, este salto para trás como “o voltar para dentro do Ereignis”. O Ereignis, o pertencer mútuo da doação apropriante e do projeto apropriado, é nele mesmo um saltar para trás ou um voltar. Quando Heidegger fala nos Seminários de Zollikon, do “ser como relação (Ereignis) “, ele nomeia com a palavra relação esta doação apropriante para o projeto de Dasein, que é o projeto apropriado a partir dela.

19. Mas quais são as consequências para a analítica do Dasein, se a transcendência da compreensão do ser é abandonada em benefício do Ereignis, quer dizer em benefício do projeto de ser apropriado, que salta para trás, a partir da doação apropriante? Segundo uma opinião amplamente difundida, Heidegger teria, com esta virada de seu pensamento, deixado o pensamento de Ser e Tempo, e assim o pensamento da analítica do Dasein como ontologia fundamenta, para se dedicar ao pensamento do ser como Ereignis. A partir, o mais tardar do aparecimento dos Beiträge zur Philosophie, dever-se-ia ter compreendido que esta interpretação errônea da passagem do pensamento da ontologia fundamental ao pensamento da história do ser não é sustentável. Pois esta interpretação do pensamento da história do ser não saber distinguir a analítica do Dasein ela mesma da interpretação, conforme à ontologia fundamental, da compreensão do ser como um transcender. Com o abandono da transcendência não se abandona, entretanto, o Dasein como existência que compreende o ser. Se Heidegger critica, nos Beiträge zur Philosophie, a insuficiência do caminho da ontologia fundamental, ele não visa ai jamais a analítica do Dasein ela mesma, mas somente a concepção transcendental e horizontal da relação que liga o Dasein, no desdobrar de seu ser, à abertura do ser. “Ontologia fundamental” equivale aqui à “transcendência”, mas não a “Dasein” interpretado existencialmente. Heidegger diz expressamente nos Beiträge zur Philosophie: “não se pode jamais mostrar e descrever o Da-sein como um ser-ai-adiante. Só se pode chegar aí de modo hermenêutico, o que quer dizer, segundo Ser e Tempo, aí chegar pelo projeto lançado. Como diz claramente este enunciado, o pensamento do Ereignis mantém a hermêneutica fenomenológica do Dasein de Ser e Tempo. Sem a analítica do Dasein efetuada de modo hermêutico e fenomenológico e sem suas aquisições analíticas, tudo o que é dito do Da-sei como projeto apropriado no quadro do pensamento da história do ser ficaria totalmente incompreensível. Entretanto, o esboço do pensamento do Ereiginis, traçado nos Beiträge zur Philosophie, não tem de repetir a analítica do Dasein ela mesma. Pois, os Beiträge zur Philosophie são em primeiro lugar a elaboração, conforme ao pensamento da história do ser, da temática que deveria ter sito tratada, no caminho de Ser e Tempo, sob o título “Tempo e Ser”, de modo transcendental e horizontal, e, neste sentido, conforme à ontologia fundamental, a analítica do Dasein de Ser e Tempo tivesse sido igualmente abandonada pelo pensamento da história do ser, Heidegger não teria podido, nos Seminários de Zollikin, fundar com Medard Boss a Daseinanalyse clinica sobre a analítica filosófica do Dasein.

20. Mas se a analítica do Dasein ela mesma é mantida, com todo seu saber fenomenológico e hermêutico concernente aos caracteres existenciais do Dasein, no quadro do pensamento do Ereiginis, então a Daseinsanalyse clinica encontra seu fundamento não apenas do Da-sein concebido transcendentalmente e horizontalmente, mas igualmente no Da-sein que pertence ao Ereignis. Assim como a Daseinanalyse clinica para sua própria realização, não perde de vista o Dasein como compreensão transcendental do ser, sem, entretanto, tematiza-lo como tal, ela também não tematiza o Ereiginis, mas ela se realiza trazendo um olhar compreensivo sobre o Da-sein em seu pertencer ao Ereignis. Deste modo indireto, a Daseinanalyse clinica pertence ela mesma ao Ereignis. Porque os fenômenos concretos que concernem ao paciente e ao analisando, com os quais ela lida, são tais que eles se mantêm no interior da abertura do ser, que ase abre pela doação apropriante e o projeto apropriado.

21. Tentemos nos familiarizar com estes fatos. Nos Beiträge zur Philosophie, o Da-sein pertencendo ao Ereiginis e experienciado como tal é sempre designado pela expressão “projeto apropriado”. O ser-apropriado do projeto designa o ser-lançado desse, seu ser-lançado a partir da doação apropriante. Concebendo o Da-sein, que é experienciado como pertencendo ao Ereignis, como projeto apropriado, o pensamento do Ereignis parte diretamente da definição do Dasein conforme a analítica do Dasein dada em Ser e Tempo. Mas nós sabemos também que a projeção lançada constitui a estrutura central da totalidade existencial da existência tendo uma compreensão do ser, totalidade que traz o nome de “cuidado”. A projeção lançada se realiza como cuidado pela abertura do ser-no-mundo e do ser em geral. Mas, como terceira estrutura existencial, faz parte igualmente desde cuidado a relação ao ente, ao qual o Dasein se relaciona compreendendo o ser. Esta relação é, de uma parte, o ser, na preocupação, junto ao ente que não é da ordem do Dasein, e de outra parte, o ser, na solicitude, com o outro Dasein. Mas na medida em que o ser-projetante lançado é concebido como um ser-com o outro Dasein, de modo existencial, a relação ao outro, que se efetua na compreensão do ser, não faz somente parte da terceira estrutura do cuidado – o ser, na solicitude, com o ouro, mas igualmente do ser-lançado e do projeto mesmos. O Dasein realiza seu ser-projetante lançado com ser-com, de tal maneira que a abertura do ser-no-mundo e do ser em geral, que se abre na projeção lançada é sempre já partilhada em comum com o outro Dasein.

22. Realizando a projeção lançada de meu ser-com o outro Dasein, na solicitude, eu trago em mim o cuidado pela abertura do ser do outro. Este ser é o outro Dasein, o Co-Dasein. Por esta palavra “Co-Dasein” Heidegger pensa duas coisas: de uma parte o outro ente da ordem do Dasein, de outra parte, o ser deste, que podemos chamar igualmente de co-existência. É preciso notar que por este “co” o outro é pensado enquanto este que me é estranho. O Co-Dasein ou a co-existência é um modo de ser autônomo, exterior ao modo de ser da existência a cada vez minha, que, por sua parte, é concebida como ser-com enquanto manter-se aberto para outro Dasein.

23. Se nós olhamos a solicitude se efetuando na compreensão do ser como solicitude antecipadora e liberadora, podemos dizer que eu trago em mim o cuidado pela abertura do ser do outro, de tal maneira que eu ajudo o outro “a aí ver claro em seu próprio cuidado e a ser tornar livre para ele”. No quadro da interpretação transcendental da solicitude se efetuando na compreensão do ser, isto significa: na realização do projeto lançado existencial, na solicitude, o Dasein transcende o outro ente da ordem do Dasein em direção da abertura de sua co-existência, para poder, a partir desta abertura de seu Co-Dasein aberto transcendental e horizontalmente, compreendê-lo como o outro.

24. Mas se afasta o olhar transcendental e horizontal em beneficio do olhar do Ereignis, é preciso notar isto: na doação do apropriante da abertura ao ser do outro, realizando-se a solicitude se efetuando na compreensão do ser como uma projeção apropriada que abre, recebendo-a, a abertura que lhe é dada. Se nós levamos em consideração ao mesmo tempo o fato de que ser com o outro na solicitude não é jamais uma relação unilateral, mas uma relação recíproca, devemos dizer: pela doação apropriante da abertura para o ser do outro, do qual não se pode dispor, realiza-se, reciprocamente, a solicitude se efetuando na compreensão do ser como uma projeção apropriada recíproca. O ser-uns-com-os-outros na solicitude se realiza no seio do Ereignis, no seio do salto para trás da doação a cada vez apropriante e do projeto a cada vez apropriado. O ser-uns-com-os-outros, que é assim concebido em seu pertencer ao Ereignis, constitui o âmbito no interior do qual se realiza a Daseinanalyse existenciária como relação mútua entre analista e analisando, entre médico e paciente.

Bilê

Esta tradução, a partir do francês, destina-se apenas aos nossos grupos de estudo.
Numerei os parágrafos, seguindo o exemplo do Hélio, para facilitar a nossa localização na comparação com o texto original e comunicação.
Traduzi, de acordo com o modelo que costumamos usar: existencial e existentiaux por existencial e existenciais (no plano ontológico); existentiel e existentielle por existenciário, existenciária (no plano ôntico).

Optei por algumas traduções:
avertissement-notas introdutórias. Poderia ser prefácio.
Ajointemente-articulação
Ensemble-coesão (4) – unidade tendendo ao sincronismo de movimentos e a colaboração – (poderia ser conjunto, composição, reunião)
Agencement-organização
Accomplir-realizar. (executar? Efetuar?)
Être-là-devant – ser-aí-adiante
Se rapporter-relacionar-se a (referir-se a?)
Souci-cuidado, préoccuption-preocupação.
Rebond-salto para trás (ressalto, recuo, ricochete, volta)
Propriant, proprié – apropriante, apropriado.

Só como curtição: No francês, há a palavra próprio que significa aquele que não é proprietário, o dono, mas aluga a casa. (Que tal ver o Dasein como “le próprio” da morada do ser? Sem ser dono, mora “de aluguel”; é como o arrendatário, que cuida do lugar onde habita, pastorei por ali, enquanto dure sua existência. Até que soa bem.)

No (3), fala-se de dois caminhos e duas maneiras para se entrar em contato e para se apresentar a “fuga” do pensamento da história do ser. Primeiro caminho e primeira maneira: a organização propiciada pelos Beiträge zur Philosophie, em que se prepara o pensamento do Ereignis. Segundo caminho e segunda maneira: todos os outros escritos de Heidegger depois dos anos 30 até o surgimento dos Beiträge zur Philosophie.

Nos (5) e (6) também se fala em dois caminhos, agora, para se pensar a questão do ser, ou seja, a relação da verdade do ser ao Dasein e a relação do Dasein à verdade do ser. Um primeiro caminho é aquele de Ser e Tempo, com as noções de transcendência e de horizonte. Um segundo caminho é aquele em que a relação da verdade do ser ao Dasein se mostra, não mais como horizonte, mas como doação apropriante, e a relação do Dasein à verdade do ser não se mostra mais como transcendência, mas como projeto aprorpriado; é o caminho dos Beiträge zur Philosophie.

É legal lembrar uma nota que vem no texto sobre a palavra “fuge”, fuca, tendo a ver não com fugir e sim com juntar, articular, encaixar, mais de acordo com o termo “fuga” na música, onde os sons se juntam, se encaixam obedecendo às regras do contraponto (se bem que, no sentido musical, o termo venha do italiano “fuga”, la fuite, no francês). Nota da tradutora para o francês: “Em alemão, “fuge” vem do verbo “fügen” (juntar, adaptar) e designa primeiramente o “junto”, a “junção”, o “encaixe”; a forma reflexia “sich fügen” pode significar não so “adaptar-se”, mas também “obedecer” ou “resignar-se a”…”

No caminho do pensamento que pensa a história da fuga do ser, também se juntam ou se articulam: ressonância, entre-jogo, o salto, o fundamento, os que estão por vir, o último deus.

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