Livrar-se ao Tempo ou o sentido da psicoterapia
Efêmeros!
Que somos?
Que não somos?
O homem é o sonho de uma sombra.
Píndaro
Há dez anos submeti-me a um processo de psicoterapia que se estendeu por quatro anos. Na época iniciava meus estudos de psiquiatria. Pouco tempo depois passei a exercer a função de psicoterapeuta, a qual me dedico até o momento. Não tenciono expor aqui as contingências, fatos e questões específicas que me levaram a começá-la, nem tampouco descrever seus desdobramentos, mas tentar encontrar um sentido geral, um denominador comum, se me é permitida essa intrusão matemática no campo da nossa discussão, que possa trazer à luz uma resposta à questão: o que é isso, a psicoterapia?
Esse sentido geral que busco não é algo que possa ser apreendido a partir da descrição de um caso, tampouco deve se revestir dos adereços pomposos de uma linguagem reservada a iniciados. A ideia de começar este texto afirmando que submeti-me a uma psicoterapia tem como intento reconhecer o trânsito (que se pode chamar reflexão) entre as duas posições, a de terapeuta e a de paciente. Esse movimento talvez não seja perceptível (nem precisaria sê-lo): o fato desse duplo pertencimento é o que se quer ressaltar.
Gostaria de começar nosso percurso a partir de um fim, ou seja, de uma definição, uma resposta dada a pergunta que nos move. Faremos, por assim dizer, um caminho de volta, para chegar onde já estamos.
Essa definição sobre o que é a psicoterapia me foi oferecida por minha irmã Mariana, na época, aluna de psicologia na PUC em São Paulo. Estava anotada num caderno de apontamentos a seguinte frase exposta por seu professor de fenomenologia, meu futuro psicoterapeuta, Nichan Dichtchekenian: a psicoterapia se preza a devolver à pessoa a clareza modesta de que ela é responsável pela própria vida1.Essa fórmula soa límpida mas ao mesmo tempo reserva um mistério: o que vem a ser essa clareza modesta sobre a responsabilidade pela própria vida? E porque isso é algo que se devolve? Retirado por quem? Ou pelo quê? O que se seguirá é um esforço de declinação e decantação destas palavras.
Assumamos que isso seja então o que se alcança ao fim de uma psicoterapia. Se nos permitirmos brincar com a definição dada e inverter-lhe os sentidos chegaríamos a uma colocação que se referiria ao modo como nos encontramos no início do processo psicoterapêutico. Seria algo dessa ordem: ao iniciarmos uma psicoterapia temos diante de nós alguém desprovido, turvado em seu entendimento imodesto, desresponsabilizado por uma imprópria morte. Muito já nos soa aos ouvidos.
Algo nos é retirado: encontramo-nos exauridos e chegamos ao consultório de psicoterapia desguarnecidos, desprovidos, ameaçados, fragilizados. Confrontando quem éramos com quem nos tornamos, deparamo-nos com uma falta que não é outra senão de nós para conosco mesmos. Nossas possibilidades que se moviam num campo, encontram-se restringidas, por vezes constritas, até mesmo condicionadas por esse novo modo lacunar entre nós e nós. Privados, constatamos: foi-nos restrito nosso próprio ser. Isso que, enquanto se oferecia cotidiana e constantemente, mantinha-se inadvertidamente em silêncio. Pois o silêncio pode levar a um esquecimento, e o esquecimento a uma negligência. Privados, constatamos: foi-nos revelado isso que permanecia em silêncio e que, por se ausentar, faz-se ruído, turva, turbilhona: nosso próprio ser.
Algo nos é retirado: quem o fez? Quem teria poder sobre isso que é o mais íntimo, nosso ser, isso que oferecendo-se silencia, isso que se revela silenciando-se? Quem dá condições para que isso aconteça? Um deus? Um demônio? Nós mesmos?
Não podemos escolher esvaziarmo-nos de nosso ser por força disso que entendemos por nossa vontade. Como também não podemos recorrer a ela se quisermos nos preencher dele. Este poder sobre nosso ser, portanto, este comando (um dos sentidos da palavra grega arché) sobre suas possibilidades, não é uma imposição ditada por algo que lhe é superior, mas antes, uma disposição fundada por aquilo que lhe dá sustentação. Este comando (arché) é fundamento (outro sentido da palavra grega arché). Isso que funda e sustenta nosso ser é o que lhe dá condição para que ele possa apresentando-se ausentar-se e ausentando-se apresentar-se: o tempo.
O tempo funda, sustenta, condiciona e, portanto, comanda, toda e qualquer movimentação do nosso ser. É ele que nos oferece, mas também nos priva. Assim sendo, iniciamos a psicoterapia acachapados pelos desmandos do nosso ser que, fundado e comandado pelo tempo, se ausenta. Somos os algozes de nós mesmos? Somos vítimas de um capricho do tempo? Nem um, nem outro.
O tempo de que falamos aqui não é este, linear, que assumimos como a seqüência que caracteriza a cadência dos instantes do relógio, um tempo impessoal que pertence a todos e, portanto, a ninguém. Consideramos um tempo circular, mas não como algo que se encerra ao fim de cada turno, a cada volta concluída, como o passar de um ano no calendário. Falamos de um tempo que enquanto se mantém voltando-se para si, encerra uma unidade que se renova: um tempo pessoal, portanto, individual, este que cabe a cada um.
Este tempo pessoal pode ser entendido como uma unidade que contém em si uma multiplicidade: um passado, um presente e um futuro. No entanto, esses fatos temporais não são somente a somatória de períodos, que identificamos como sendo o que veio antes, o que se dá agora e o que virá depois. Este tempo que cabe a cada um é antes uma história, uma disposição num agora e um projeto, que circunscrevem mas também são circunscritos por essa unidade temporal. São constitutivos do tempo e constituídos pelo tempo, num movimento circular que se inicia com nosso nascimento, um dos modos de nossa finitude e se termina com nossa morte, outro modo de nossa finitude. Vivemos percorrendo um tempo que vai de uma finitude até outra finitude. Vivemos cumprindo uma vida que vai de um estar então vivo até um não estar mais vivo. Vivemos cumprindo um morrer-se que vai de um fim a outro fim. Este cumprimento é nossa finalidade e finitude: o tempo que nos cabe, o tempo em que cabemos.
Este tempo que nos finitiza, determinando finalidade e finitude, nos oferece, mas também nos priva. Enquanto acontece no silêncio de uma cotidianidade, esconde o segredo de ser nosso fundamento, nosso chão. Nosso espaço mais próprio é tempo: somos sendo um lugar. Este lugar é o modo mesmo como o tempo se conjuga: unidade múltipla que encerra em si uma vida: um nascer, uma história, um percurso, um projeto, um morrer.
Se o tempo nos oferece lugar, também pode nos retirá-lo. Por vezes de modo fulgurante, num átimo de instante do relógio. Excusada a redundância, somos privados do nosso lugar por isto que é o nosso lugar: nosso tempo. Sua ausência evidencia isso que nos constitui, nosso ser. Nosso ser (um lugar: um tempo) pode se ausentar num átimo. Ora, o instante do relógio continua a marcar um pulso. Este não vai deixar de ritmar uma cadência inerte a este outro tempo pessoal inclemente que nos abandona. Esse abandono não é outra coisa senão um não estar mais ali como tal. Neste átimo em que estamos à deriva (para ser mais rigoroso: em que somos uma deriva) nosso tempo deixa de determinar nossos limites. Essa deriva é uma suspensão do lugar do passado/história, presente/abertura, futuro/projeto enquanto tais. Perdemo-nos por um átimo num não ser mais si mesmo. À nossa revelia, conhecemos este não-lugar. À nossa revelia, não nos reconhecemos mais um lugar. Estrangeiros de nós mesmos, desabitamo-nos até que a deriva se abrevie terminando-se num fôlego: nosso peito saúda a angústia. Resta-nos uma pergunta: o que aconteceu? que não é outra coisa questão senão esta: quem sou eu?
Essa pergunta fundante é o leito que o discurso deste que está diante de nós traça em seu caminho numa psicoterapia. Este traçado é ao mesmo tempo resposta à pergunta: fundo, margem, represamento, queda-livre, seca, enchente, riqueza, turbulência, velocidade, estagnação, pureza, poluição. Este traçado é modo próprio da responsabilização deste pela sua existência. Não se confunde com culpa, nem tampouco com vanglória. Pode transitar entre um e outro, mas não se esgota aí, antes, mantém-se em torvelinhos: meandros.
Se este percurso tem a ver com modéstia é porque esta é o justo reconhecimento de que é pela privação que se constata isto que apresentando-se se ausenta e que ausentado-se se apresenta: nosso ser. Das margens do não avistamos a terra do sim. Compreendemos que o ser concretamente se nos é apresentado abstraindo-se. Nossa indigência revela-se nossa riqueza, justamente por nos revelar nossa constante inconstância: isso que deve a cada instante constituir-se, rearranjar-se: nós mesmos.
Este reconhecer que assume o rearranjo necessário daquilo que pode constante e cotidianamente afirmar-se negando-se é já um agradecer. Esse agradecimento constante e silencioso que se recupera através da palavra é o modo mesmo disso que podemos chamar de devoção ao tempo. E este é o sentido da psicoterapia: ser o caminhar em que se acolhe uma palavra afirmadora recolhida num espanto (há também a possibilidade de 5 um silêncio) diante disso que a cada vez se revelará como totalidade de uma existência e que se apresenta constituindo um eu. Um acontecer de si mesmo, surpreendido e não menos agradecido, por se reconhecer o acontecer de um lugar e de um tempo.
É devoto este que se reconhece habitado pelo divino. Ou ainda este que se reconhece habitando o divino. Talvez o melhor modo de indicar esta concomitância entre habitar e ser habitado seja dado pela palavra atravessamento. Como a luz transpassa uma nuvem englobando-a e produzindo sombra mas também a penetrando e fazendo-a radiante. A luz resta dentro e fora: habita a nuvem e é habitada por ela. Esse atravessamento só é possível se houver o diáfano, que podemos também nomear de permeabilidade e por fim de: clareza. Aquilo que não se entrega à luz, não é atravessado por ela. Essa entrega é um dos nomes disso que entendemos por devoção. O modo da devoção é o modo de entregar-se, ou seja, livrar-se em algo e à algo.
Devotar-se ao tempo significa: livrar-se ao tempo. Atravessar o tempo e ser atravessado por ele numa clareza que não é outra coisa senão o modesto reconhecimento de que ele nos constitui. O psicoterapeuta é este que testemunha, sendo ele também devoto, esta entrega, numa posição que, por fim, como um oráculo privado de vaticínio, insistentemente repetisse: somos tempo: história e projeto, retração e expansão, acorde e dissonância, voz e silêncio. Repitamos a palavra de Píndaro: Efêmeros! (Ephemeros: Epi Hemera: em torno do dia): aquele que está exposto ao que os dias trazem. Ou ainda: aquele que é constituído disto que é um dia, ou seja, um turno, uma volta deste (re)tornar-se do tempo que repetindo-se oferece-nos a possibilidade de renovarmo-nos mas também ausentando-se nos coloca em confrontação com nossa fragilidade, nossa finitude, nossa efemeridade.
1 Devo reconhecer que foi o encanto por essas palavras que me levaram a escolhê-lo meu psicoterapeuta.
Alexandre Valverde é psiquiatra e psicoterapeuta, autor do livro “Ruptura, solidão e desordem. Ensaio sobre fenomenologia do delírio” pela editora FAP-Unifesp.