Quando eu ainda não era um AT (o que comprova que essa denominação não tem reserva de mercado), fui procurado por um cidadão que me pedia ajuda para cuidar de seu ex-companheiro, pois este apresentava restrições de vida, como certa desorganização e ansiedades que o levavam frequentemente a lançar pedidos de ajuda e companhia.
Não sei se por culpa ou preocupação, este indivíduo se dispôs a assumir a responsabilidade da contratação de meus serviços se eu assumisse o caso. Notem que isto já estava completamente fora da situação padrão, quando alguém busca o trabalho psicoterápico.
Coube a mim procurar o candidato a ser cuidado (vou chama-lo de Luiz Claudio, o Kalu), para me apresentar via telefone e convidá-lo para uma conversa.
Ora, só me foi possível tomar esse tipo de atitude a partir de uma abordagem entendida dentro dessa liberdade onde as amarras da normatização não alcançam. Ao mesmo tempo, eu estava por minha conta e de minha supervisora.
Bom, pelo telefone eu o convenci a vir até meu consultório e o Kalu que eu recebi estava sedento de companhia e com um discurso um tanto fantasioso, tentava manter um modo de estar organizado. Trabalhava em um bar da Vila Madalena como garçom e sua moradia era uma pensão meio cortiço no bairro.
Tinha uma força pessoal admirável, sendo, por exemplo, capaz de ler toda biografia de algum executivo publicada em uma revista de negócios, tipo Exame, e com as informações conseguidas procurar se candidatar a uma vaga de faxineiro na agência de publicidade onde o executivo entrevistado na revista era diretor. A estratégia era tentar um encontro com o mesmo e convencê-lo de ser contratado como contato.
Cheguei mesmo a duvidar e pensar que a história fazia parte de seu mundo fantasioso, onde se refugiava para suportar tanta frustração e desespero. Ele era alguém bem talentoso e sensível, mas sem os recursos para conseguir cavar um lugar e sustentar sua presença se impondo ao mundo.
Era uma existência esmagada pelo contexto da produtividade. Tinha o talento da estratégia e da criatividade, mas fracassava quanto à agressividade necessária para exigir seu direito à cidadania.
O fato é que agendou sua entrevista na agência. Na data acertada, obteve autorização para entrar no prédio da empresa e se dirigir a sala de entrevista e seleção de pessoal. Burlou, então, a segurança e subiu até o andar da diretoria, apresentando-se como indicado por um tal de Sérgio para uma conversa com o sócio/diretor da agência.
É óbvio que havia nada acertado com o diretor, mas ele referiu-se a este com tantos detalhes que a secretária ficou em dúvida se não seria melhor tentar acolher seu pedido. Realmente, (depois verifiquei que não era um delírio) ele conseguiu se entrevistar com o tal sócio, que demorou a perceber que se encontrava diante de um ser humano que, apesar de talentoso, era um impostor.
A diferença era que, apesar de sua sagacidade e sem ter um desvio de personalidade, era um habitante da margem, um cidadão fronteiriço e em momentos de crise desabava, em surtos que o impediam de sustentar uma atitude vitoriosa ao providenciar o cotidiano.
Nossos encontros começaram dentro de um formato mais tradicional, pois afinal ele conseguia vir até meu consultório. Mas o dia e a hora agendados não pertenciam à cronologia comum. Vinha sempre para as sessões (duas vezes por semana), mas em dias e horários diversos, sempre à tarde, mas de maneira imprecisa.
Reparei que seu tempo era diferente do tempo comum de todos nós. Era assim muito rigoroso na sua busca de ajuda. Vinha depois do almoço e ficava aguardando por uma vaga em minha agenda para ser atendido.
Com o passar do tempo, foi se apropriando do espaço de meu consultório, onde minha secretária o recebia e o orientava.
Sua estrutura de ação no mundo foi aos poucos encolhendo: perdeu seu emprego de garçom, perdeu seu quarto na pensão, começou a frequentar o “Sopão”, albergando-se nos centros de acolhida da Prefeitura.
Acabou não conseguindo mais se organizar para sequer seguir as regras mínimas até para frequentar o Centro de Acolhida.
Sua frequência no consultório se tornou mais caótica e eu não tinha nem como mais saber dele, à medida que ia se tornando um morador de rua, sem endereço nem contato possível.
Sua indigência existencial agora se alastrava e finalmente vingava completamente. Compreendi (mas confesso que desconfiando se eu não estava fracassando em meu propósito de ajudá-lo) que ele precisou de aporte terapêutico para conseguir adoecer, dar curso a sua restrição de liberdade.
Com minha companhia a cuidá-lo, ele pode existir em seu modo indigente. Era como se antes em sua completa solidão, em um esforço extremo, ele ainda precisasse se privar de adoecer completamente. Minha presença modificou o quadro, como se o que estava incubado pudesse finalmente ganhar expressão. O que me faz lembrar que quando eu era criança minha avó costumava se referir a algumas doenças que ficavam em estado de incubação para depois virem à tona. Como um vírus que antes do corpo manifestar seus sintomas correspondentes, fica em período de incubação.
Agora a situação era de vulnerabilidade. Ele comparecia aos encontros de forma desorganizada e seu discurso oscilava entre alguma coerência linear, e uma fala caótica em um surto delirante.
Estava muito claro para mim que o protocolo que eu estava utilizando era muito pobre para dar continuidade de cuidados a ele. Eu sabia que a intervenção medicamentosa já havia se tornado imprescindível e isso me convocava para uma intervenção direta.
Mas como fazê-lo? Consegui a informação de meu contratante (o ex-namorado) que sabia o nome de uma irmã de Kalu que trabalhava em uma loja de um shopping center da cidade.
Busquei o telefone da loja e consegui achá-la no trabalho. Expliquei a ela toda situação de seu irmão e ela providenciou o contato com seus pais que moravam em uma cidade próxima à capital.
O contato com os pais foi difícil, pois em princípio desconfiaram muito de toda a situação. Estranharam minha preocupação e cuidado, suspeitando muito desse meu interesse e até insinuando que eu deveria ter propósitos escusos inconfessáveis em relação ao Kalu.
Lidei com a situação da melhor maneira possível e consegui trazê-los a São Paulo. Eles eram os responsáveis mais diretos que poderiam providenciar uma intervenção adequada para a situação: levá-lo a uma possível internação para ser medicado ou mesmo a algum aparelho (CAPS) que, em um trabalho em rede multidisciplinar, poderia ser bem mais adequado.
Criei junto a esses pais um esquema de campana. Eles vinham no período da tarde e esperavam no consultório que Kalu aparecesse.
Demos sorte, pois na terça-feira seguinte ele apareceu. Estava sem banho, barba por fazer e bastante desnutrido. Sua surpresa foi grande ao avistar seus pais. Abraçou sua mãe, mas manteve distância e cautela em relação ao pai.
Subimos para a sala (havia deixado as tardes reservadas para esse encontro, desmarcando a cada vez meus outros pacientes), onde uma conversa difícil foi sendo entabulada. Seus pais estavam perplexos com seu modo atual de existir e fui explicando a ele que eu os havia chamado para que ele pudesse ser ajudado mais adequadamente a se organizar e poder voltar a trabalhar, administrar sua vida e se defender dos inimigos. Ultimamente, de fato, como ele mesmo foi explicando, percebia que esses o perseguiam sem lhe dar trégua a ponto de muitas vezes ter que se esconder na casa de pessoas desconhecidas para não ser agredido ou machucado, pois queriam que ele sofresse, que ele sentisse dor (esse discurso delirante vivia nos últimos tempos fazendo parte de nossos encontros).
Estou economizando um pouco minha descrição, mas para o que pretendo com esse relato, não vejo necessidade de ser mais detalhista.
Os pais convidaram-no a aceitar ajuda e a ir com eles para sua cidade natal. Em princípio ele se negou a aceitar, dizendo que não iria porque seu pai não gostava, nem nunca havia gostado de sua pessoa. Ele sabia muito bem que não era aceito, portanto não fazia sentido ir.
Fui tentando desconstruir essa situação e consegui de seu pai uma declaração de afeto e carinho (que não foi muito convincente). Para minha surpresa, ele diz que se fosse verdade que seu pai o amava, ele deveria beijá-lo na face.
Fulminei com meu olhar seu pai, significando que ele deveria beijá-lo imediatamente: ele percebeu e assim o fez. Kalu reage dizendo que aquele beijo não valia de nada como prova de amor, pois ele o recebeu na face direita do rosto. O beijo correto teria que ser dado na face esquerda, do lado do coração.
Imediatamente o pai beija-o, agora de forma “correta”, e ele acaba indo com seus pais. Mais tarde fico sabendo que os pais haviam conseguido acolhimento no Caps de sua cidade e a partir disso não tive mais notícias do Kalu.
Esse relato serve de exemplo daquilo que tem sido minha rotina como clínico atuante nesses últimos 30 anos.
Esse método investigativo nos permite embasar um trabalho com muita liberdade de ação. Autoriza-nos a ressoar, e esclareço que uso essa expressão pela sua sonoridade e por sua referência a um acorde vibracional, o que descreve bem nossa busca de uma harmonia correspondente a cada situação que se apresente: abrir se está fechado, fechar se está aberto. Molhar se está seco, secar se estiver molhado.
Atuar no mundo como quem complementa as situações de forma a efetivar uma realização. Nesse sentido, nossa atuação poderia ser comparada muito mais à arte do que ao emprego de uma técnica.
Assim, a cada situação que o Kalu me apresentava, eu buscava corresponder a partir daquilo que me convocava na própria situação. Nunca foi uma interpretação a partir de qualquer teorização prévia. Era tudo sempre muito vivo, intenso e servia apenas para aquele momento específico.
A atitude que responde adequadamente a um certo momento, horas mais tarde pode não funcionar, o que acaba com qualquer ilusão de se construir um manual de procedimento. Não há previsões certeiras, apenas um estado de alerta para cada surpresa do mundo.
Talvez o que o próprio Freud chamava de atenção flutuante possa ser evocado como nossa referência e enquanto atitude. Estamos muito mais para poeta infernizado do que para cientista de Prêmio Nobel.
Como afirma Juliano Pessanha (2000), “Penso com Heidegger que a experiência que revela o caráter intrinsecamente sintomático de toda teoria não é uma experiência ensinável, ela acontece ou não. Dizer a alguém num instituto de formação profissional ‘primeiro você vai estudar direitinho a teoria do aparelho psíquico e das posições de Klein, depois todas as fases do amadurecimento de Winnicott ou as estruturas de Lacan e feito isso você precisa saber que quando estiver escutando o outro, você não o escutará a partir de nada disso, mas do lugar vazio que a angústia cavou’” (p.92).
E era isso que eu possuía para me guiar nas decisões que fui tomando ao acompanhar Kalu.
Sua existência foi me desafiando mostrando-me que tudo que eu havia aprendido de orientação em termos ortodoxos na academia, simplesmente fracassava.
Faz-se necessário construir uma nova academia e ela já se desenvolve aos poucos por todas as áreas. Principalmente a atualidade nas pesquisas da física quântica. Mas também na antropologia, onde encontrei nos estudos de Carlos Castañeda referências significativas.
Em uma publicação acadêmica, “O Caminho do Guerreiro” (1996), Carlos Castañeda afirma que, sem o saber, os xamãs (objeto de estudo desse famoso antropólogo) eram praticantes autodidatas do método fenomenológico (pag.33). Lembremos que os xamãs expandem os parâmetros do que eles podem perceber ao ponto de perceberem sistematicamente o desconhecido (pag. 22).
Cito essa referência a título de localizar essa atitude de pesquisa e mesmo de experiência vital, como sendo mais originária e nesse sentido conseguir contemplar o que em nós é mais humano e assim adequado ao que em nós se mantém em saúde.
O Homem, com o desenvolvimento das ciências, distanciou-se do humano e mais do que fomentar o desumano, se encaminhou para o fomento do inumano.
Kalu sofria exatamente dessa inumanização, algo bem mais profundo do que o mero desumanizar.
Meu trabalho e meu modo de existir naquela época, e hoje, encaminha-se para estar sempre aberto ao desconhecido, a cultivar o humano, a desejar a vida e assim receber a morte. Talvez eu seja um xamã, sem o saber direito.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
– Pessanha, J. G. (2000). Ignorância do sempre. São Paulo: Ateliê Editorial;
– Castañeda, Carlos (1996). Leitores do Infnito – Revista de Hermenêutica Aplicada.