Júlio César Ramos de Oliveira
Arthur Tufolo
O próprio carvalho afirmava: só um tal crescimento
pode fundar o que dura e frutifica. Crescer significa
abrir-se à imensidão do céu e também deitar raízes
no obscuro e firme chão da terra. Tudo que é
verdadeiro e autêntico não chega à maturidade, senão
quando o homem está disponível ao apelo mais alto
do céu, permanecendo ao mesmo tempo sob a proteção
da terra que tudo abriga, dá e produz.
(Martin Heidegger)
Quando iniciei o trabalho de Acompanhamento Terapêutico (AT), Jorge (nome fictício) tinha 40 anos. Sua primeira crise havia ocorrido aos vinte.. Ele não conseguiu se manter na faculdade de economia, e, nessa época, perdera seu pai e também estava envolvido com o uso de drogas. Em decorrência desses acontecimentos, necessitou de algumas internações psiquiátricas, seguidas de trabalhos ambulatoriais, sem nunca ter dado maior continuidade e consistência em qualquer tipo de tratamento.
Acompanho Jorge há 16 anos. Fui solicitado a conhecê-lo a partir da interrupção da terapia, devido ao seu impedimento e restrição em se deslocar ao consultório. Esse quadro, sem sustentação e suporte clínico, acontecia havia quase um ano, sem aderência a nenhum tipo de tratamento. O paciente não saía de sua residência durante esse período. Segundo sua terapeuta, ele ouvia vozes e sentia-se constantemente perseguido. Quando o conheci, ele me pareceu muito tenso diante de minha presença. Constatei no decorrer dos encontros, e ainda hoje percebo, que a minha simples presença é o suficiente para fazê-lo sentir-se ameaçado e, por vezes, invadido. Jorge habita um lugar existencial de constante iminência de não-ser, uma profunda experiência de solidão e vazio, uma fundamental insegurança de ser quem ele é.
A princípio, nossos encontros se davam na sala de visitas, depois Jorge me convidou a entrar em sua casa. Após um ano, ele me convidou a ir ao seu quarto, o lugar de sua residência que lhe parecia mais protegido e íntimo. Ele me orientava a me sentar numa poltrona que havia no aposento, porém, logo percebi que a posição de estar sentado frente a frente, de igual para igual, deixava-o muito perturbado e incomodado, como se eu estivesse ultrapassando um limite e minha presença fosse avassaladora no seu existir. Diante dessa circunstância, passei a me sentar no chão, como forma de um novo reposicionamento. Rapidamente observei o paciente sentir-se menos invadido e ameaçado.
Jorge relatava ser perseguido, maltratado, humilhado e desrespeitado, dizendo que “queriam acabar com ele”. Então, “respondia” a esses “perseguidores’ chamando-os de assassinos e ladrões, pois dizia também que, depois de matarem as pessoas, eles ainda as roubavam. Nesses momentos, eu percebia que seu tom de voz se alterava, seu corpo se tencionava, seu olhar se expandia e se intensificava, ele então movimentava os braços de maneira agitada e sua respiração se tornava ofegante, como se seu estado emocional transbordasse os limites do corpo. Seu olhar, por vezes, cruzava com o meu; gradativamente esse estado emocional ia se dissipando e, com frequência, uma retomada da tranquilidade se restabelecia ao final de nossos encontros. Nessas ocasiões me sentia sustentando a sua insustentabilidade, suportando a insuportabilidade de seu existir.
Cabe destacar que além de interromper a terapia, ele também deixou de ir às consultas psiquiátricas, portanto, no momento em que o conheci, ele não estava tomando sua medicação regularmente, o que me levou a tomar uma atitude. Após os primeiros meses de trabalho, decidi apresenta-lo a um médico psiquiátrico. Levei o profissional à residência de Jorge. Isso não lhe agradou num primeiro momento, pois “mais um ser humano iria se aproximar”, o que era suficientemente assustador para ele, porém se fazia extremamente necessário. Segundo o médico que acompanhava o caso de Jorge anteriormente, seu quadro clinico e a sintomatologia apresentada teriam como procedimento uma internação psiquiátrica, indicação de tratamento que foi negada pela família.
A fenomenologia existencial não trabalha com procedimento, uma vez que não visa a resultados, tampouco estabelece metas a serem alcançadas. Diferente da metodologia científica que busca freneticamente soluções e resposta, procurando explicar tudo o que existe, a fenomenologia não trabalha a partir de cálculos e comprovações, pois, para os fenomenólogos, para algo existir, não há necessidade de provas nem de justificativas (Stein, 2001).
Devo acrescentar que certa “imprecisão” que o leitor possa perceber nos termos que estou usando para relatar meu trabalho pode ser justificada pelo método. Na verdade, tais termos são escolhidos por seu rigor. Em uma descrição fenomenológica, diferentemente das ciências naturais, prescindimos da precisão em favor do rigor. A frase de Shakespeare (2003) “Sinto a fúria de suas palavras, mas não entendo o que dizes”, é exemplo poético, em que a poesia falha na precisão, mas rigorosamente transmite ao leitor uma experiência de significância.
Jorge sentia-se constantemente ameaçado. Tudo o que vinha do mundo, inclusive a minha presença, trazia uma atmosfera aniquiladora e mostrava o quanto era tênue e frágil o seu modo de existir. Como resposta, em correspondência, era necessário o estabelecimento de um vínculo. Pensando na possibilidade dessa relação vir a ser de confiança, eu diria que a minha atitude inicial era cultivar essa atmosfera ao longo do nosso caminho. O sentido e a minha direção nesse trabalho eram fomentar um modo de cuidar, em que eu procurava compreender a existência humana.
Após seguidos anos de trabalho, esses episódios de constante ameaça se tornaram pouco a pouco menos frequentes. Porém, o simples toque de campainha de um entregador de pizza era suficiente desestabilizador para Jorge. Essa situação era profundamente perturbadora, assim como a presença de técnicos de TV, telefone, e de inúmeras empregadas que passavam por sua casa. Presenças que o solicitavam de maneira muito intensa e extrema.
Ao longo dos primeiros anos de nosso trabalho, Jorge iniciou um tratamento dentário. Antes disso, deixava sua casa somente em dia de eleição e na época do recadastramento da aposentadoria. Suas saídas passaram a ser específicas e sempre acompanhadas por mim ou por um familiar, pois em hipótese alguma saía sozinho.
Devido à delicadeza e fragilidade do ser humano com quem me encontrava, avaliei a conveniência em continuar a atendê-lo, no primeiro ano de trabalho, duas vezes por semana, sem nenhum recesso de minha parte, uma vez que essa existência não estava no mundo, não fluía num tempo linear como a maioria das pessoas. Os feriados do ano, como Natal e Ano-Novo, para ele, não tinham o menor sentido. Havia um comprometimento/restrição em relação ao tempo. A questão do cumprimento de horários, do reconhecimento dos dias da semana, da chegada do fim de semana e da alternância ente dia e noite eram vividos numa outra relação temporal. O que determinava essa experiência de tempo não linear, muito provavelmente, era o fato de seu existir estar tomado pela afinação de medo (Heidegger, 1989) e ameaças constantes.
A questão climática era outro exemplo de experiência alterada pela afinação de medo. Nós vivenciamos as estações do ano; mas, para ele, esse aspecto, poderíamos dizer, não estava no mundo como para a maioria das pessoas. Havia também um descompasso entre a maneira como ele se vestia e as temperaturas climáticas. É curioso notar que, apesar de não se proteger adequadamente contra condições climáticas adversas, ele nunca adoecia, o que, na minha compreensão, deve-se ao fato de que as doenças clínicas do cotidiano ligadas à temperatura e ao vento não tinha espaço para se manifestar no seu existir humano.
Outro aspecto que chamou minha atenção ocorreu a partir do segundo ano, quando me afastei, por motivo de férias, por um período mais longo. Esse momento foi muito difícil. Ele não aceitou que um profissional me substituísse e, no meu retorno, não autorizou que eu entrasse em sua residência. Sua mãe e irmã ficavam constrangidas com o fato e eu lhe disse, do portão de sua casa, que estava tudo bem e que ficaria ali. Caso mudasse de ideia era só me solicitar, pois estaria disponível durante o tempo do nosso encontro.
Nessa época, ele pedia que sua mãe ligasse no meu consultório, e seus telefonemas se alternavam entre pedir a minha presença e a minha ausência. Jorge oscilava entre querer e não me querer ao seu lado.
Decidi aguardá-lo, ou seja, guardá-lo, cuidar dele, zelar por ele. Guardião de seu ser, estar junto de uma singularidade humana que, apesar da nova distância física, estava mais envolvida e implicada com o que se mostrava. Mantive a minha presença no portão de sua residência até que, passados três meses, ele voltou a me autorizar a entrar.
Conduzido e orientado pela solicitude antecipativa (Heidegger,1989), que está diretamente relacionada com um modo de estarmos com o outro (ser-no-mundo) a partir de nossa autenticidade, portanto atravessados por nossa experiência de desamparo, esse modo “não indiferente de ser” ajuda o outro “ a tornar-se si mesmo, em sua cura transparente e livre para ela”. Esse seria o modo de cuidar de si e do outro (cura) que marcaria a atitude terapêutica ou a própria terapia. Um modo de estar lado a lado.
Ainda segundo Heiddeger (2002), a proximidade é aproximar o distante enquanto algo que está distante. É necessário considerarmos a distância e a usarmos para uma lenta aproximação que permite a intimidade. Vemos que a proximidade, o “poder acompanhar de forma próxima” está ligado a um movimento de aproximação que ao mesmo tempo respeita os limites e as diferenças que nos distanciam do outro enquanto outro.
Tudo isso ocorre numa linha tênue e sempre corremos o risco de estar ao lado da pessoa e não intimamente acompanhando-a. Tal atitude retira do outro o seu zelar substituindo-o, pressionando- muitas vezes anulando-o, não favorecendo, assim, que o outro fique livre para seu existir. O que se contrapõe completamente a uma maneira de estar, nomeada “solicitude substitutiva” (Heidegger, 1989).
O outro se retrai à medida que ficamos “sobre”, abafando-o e não lado a lado e próximo, numa intimidade Essa maneira de “ser-em” diz respeito ao providenciar cotidiano do impessoal, em que o ser humano pode experimentar a certeza tranquila de si mesmo e o ”sentir-se em casa”. A marca maior desse modo é a familiaridade, “o estar familiarizado com”, na ilusão do amparado e protegido.
Naquele momento compreendia que essa era a condição de estar ao lado de Jorge. Era uma forma possível de estarmos juntos, e também vital para a sustentação desse modo de cuidar (zelar). O seu modo de existir era restrito, impedia-o de estar no mundo de uma forma mais livre, constantemente experimentava uma incerteza de permanecer tranquilo. Minha postura era de acreditar que a minha presença gradativamente legitimava o lugar existencial em que ele habitava, simplesmente o acompanha e testemunhava um estar junto de um ser humano, nas particularidades que Jorge me mostrava a cada atendimento, pois cada encontro humano é único e transformador.
Devo enfatizar que meu gesto autorizou e permitiu a Jorge estar em sua plenitude e me receber da maneira que lhe era possível. A distância física fazia-se necessária. Eu não desistia e tampouco o abandonava. Esse pedido era digno dele e acolhido por mim. Mantinha uma fiel escuta de Jorge, eu o aceitava nas suas condições e possibilidades, e ele podia ser quem ele era realmente. Admiti como hipótese que aquela era a maneira reativa de ele responder ao meu retorno após dois anos consecutivos de atendimento.
Percebo que a minha presença era fundamental diante do que ele vivia e sentia, reconhecendo a existência de um ser humano com toda sua dignidade, embora tivesse restrições na maneira de existir. Estar junto daquele modo de ser tão singular, numa atmosfera de respeito e consideração, numa atitude que abre espaço e que permite que o fenômeno se mostre sem críticas, expectativas e censuras. Essa minha maneira de estar possibilitava o com-partilhar de sua existência humana, focado em que estava no “confiar” e “fiar-com”. É uma atitude completamente apoiada no modo de existir e prestar assistência (assistir cuidando) de um psicoterapeuta ou um acompanhante terapêutico (at) que usa o método fenomenológico existencial.
Nas palavras de Juliano Pessanha (2000):
Penso com Heidegger, que a experiência que revela o caráter intrinsicamente sintomático de toda teoria não é uma experiência ensinável; ela acontece ou não. Dizer a alguém num instituto de formação profissional: “primeiro você vai estudar direitinha a teoria do aparelho psíquico e das posições de Klein, depois decorar todas as fases do amadurecimento de Winnicott ou a estrutura de Lacan, e feito isso você precisa saber que quando estiver escutando o outro você não escutará a partir de nada disso, mas do lugar vazio que a angústia cavou”. (pag. 92)
Então, num passe de mágica, milhares de psicólogos e psicanalistas (entre outros), inteiramente identificados com a ordem do mundo falando do indizível, decorariam frases de Levinas e até mesmo buscando os livros de Maurice Blanchot, e pessoas que jamais mantiveram uma relação tensa e desassossegada com o próprio ser começariam a dizer que o filósofo Martin Heidegger levantou a interessante questão do sentido de ser. (pag. 93)
É claro que aí também estariam incluídos, além de todos os profissionais da saúde, como médicos, enfermeiros, at, muitos outros interessados pela existência humana, como Fernando pessoa, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Manoel de Barros, entre outros.
Ou seja, na referência metodológica da fenomenologia, para poder estar com o outro em uma escuta propiciadora, o próprio terapeuta teria de surgir resplandecido e solitário. Só a experiência própria de uma vivência verdadeira pode colocar o terapeuta em ressonância com o outro. Na compreensão subsiste, existencialmente, o modo de ser do “ser ai” (homem), enquanto um poder ser. O “ser aí” não é algo simplesmente dado. Ele é a possibilidade de ser (Heidegger, 1989).
Compreender algo é existir em algo. Esse algo no caso do homem, não é uma coisa ou um objeto, mas sim um ser vivo pleno de possibilidade e sentimentos. Acredito ser fundamental para o terapeuta fenomenológico banhar-se na sua própria e profunda solidão, e contemplar o existir humano, em toda sua complexidade e na riqueza de significações. Acompanhar terapeuticamente uma existência significa possibilitar uma escuta e um acolhimento que recolhem e libertam o outro para si mesmo, abrindo um espaço que permita ao ser humano ser quem ele é.
Como dizia o poeta Angelo Sinesius, citado por Heidegger (2007): “A rosa não tem porque, floresce já que floresce”. Os paradigmas citados podem soar muitas vezes estranhos, pois trabalhar com uma linguagem poética, com metáforas, aproxima a experiência, mas não a explicita, tampouco explica o acontecer humano. Esse modo de estar com o outro seria uma forma de garantir minimamente uma fidelidade ao acontecimento do paciente (como descrição do que ele vive e me mostra), fecundando um espaço vital, onde ele pode ser ele mesmo.
Jorge não passou mais por internações restritivas, esse acontecimento do seu existir humano me diz que hoje ele é quem realmente é, de forma mais livre e próxima de sim mesmo. Uma vida em que ele mostra, a cada momento, que ele pode ser, e aqui o “poder ser” faz um contraponto com o “ser poder” (Heidegger, 1989).
Estou convencido de que minha presença numa relação de correspondência propiciou um verdadeiro encontro com Jorge, e isso é a fonte dos desdobramentos de possibilidade dos modos do existir humano.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
– Heidegger, M. (1989). Ser e Tmpo. São Paulo: Vozes;
– Heidegger, M. (2007). A essência do fundamento. Coimbra: Edições 70;
– Heidegger, M. (2002). A coisa. In: Ensaios e conferêcias. São Paulo: Vozes;
– Pessanha, J. G. (2000). Ignorância o sempre. São Paulo: Ateliê Editorial;
– Shakespeare, W. (2003). Otelo, o mouro de Veneza. São Paulo: Martin Claret;
– Stein, E. (2001). Compreensão e finitude. Rio Grande do Sul: Inijuí.